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sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

SEM TABU: Diretor do ITEP desmistifica ‘estórias macabras’ do necrotério e revela bastidores da perícia criminal

Foto: Cedida/Marcos Brandão/ITEP-RN
Todo mundo vai morrer. Isso é fato. Alguns com idade avançada, outros não. Mas duvido que você queira fechar esse ciclo natural da vida deitado sobre uma mesa cadavérica. Só de ouvir a palavra necrotério, a maioria torce o nariz, sente repulsa. E se um dia alguém estiver lá, realmente algo de trágico aconteceu. Seguramente, essa pessoa não irá observar, mas muita gente estará de olhos abertos nela, investigando a causa da morte e quem a provocou. Esta é a rotina de profissionais do setor de Medicina Legal do Instituto Técnico e Científico de Perícia (ITEP), que começam o dia, quando o seu termina.
Nossa entrevista é com o diretor-geral da instituição, o engenheiro mecânico Marcos José Brandão Guimarães, 44 anos, que também é perito criminal. A partir de agora, ele irá ‘abrir as portas do necrotério’ ao leitor do Blog do BG, relatando curiosidades da Medicina Forense, bem como desmistificando as insólitas ‘lendas urbanas’ que perduram no imaginário popular. A reportagem é de Wagner Guerra.
Sem hora marcada, o portão de acesso ao necrotério, na rua Ferreira Chaves, na Ribeira, é aberto para a chegada do rabecão (viatura de remoção de corpos). Em uma sala de quase 40 metros quadrados, bem iluminada, com leve aroma adocicado – intrínseco ao sangue humano -, e decorada apenas com um crucifixo na parede, pelo menos três médicos legistas e cinco necrotomistas aguardam, pacientemente, a entrada do cadáver no plantão.
Ao seguir, rigorosamente, os trâmites burocráticos da autoridade policial ou pericial (Guia de Remoção de Cadáver ou Guia de Exame Necroscópico), é hora de colocar a ‘mão na massa’.
Após o banho, começa uma análise criminal minuciosa no corpo, observando, antes de tudo, as lesões provocadas. Exames de detecção alcoólica e toxicológica, coleta de sangue em vísceras, verificação de conteúdo gástrico e gravidez também são providenciadas. Tudo embasará a investigação policial.
Foto: Cedida/Marcos Brandão/ITEP-RN
De fato, grande parte dos instrumentos utilizados nas necropsias é cirúrgico, como em qualquer hospital ou pronto-socorro. Contudo, lembra Marcos Brandão, como o objetivo do legista é tão somente encontrar vestígios no cadáver, a exemplo de um projétil de arma de fogo, podem ser utilizados até mesmo utensílios domésticos (concha de feijão) para retirar o acúmulo de sangue ocasionado por hemorragia. Também são usados, acredite, arcos de serras industriais em procedimento de abertura das calotas cranianas.
Se o leitor está achando tudo isso, no mínimo esdrúxulo, se prepare. Em tempos passados, o ITEP utilizava, pasmem, hastes de guarda-chuva como agulha para costurar a pele endurecida do cadáver, após as incisões. Contudo, minimiza Brandão, o ‘objeto de sutura’ já foi substituído por agulhas veterinárias. “Alguém pode até achar que se trata de uma carnificina, mas não é verdade. Procuramos, apenas, usar objetos mais práticos. Em breve, vamos adquirir serras elétricas para agilizar e facilitar o trabalho”.
Com 15 anos de carreira na Perícia Criminal, onde afirma ter ido a mais de mil locais de mortes, Brandão frisa que é preciso ter aptidão e preparo psicológico para encarar cenas extremamente violentas, embora predomine o sentimento de se fazer justiça. Trata-se, portanto, de uma tarefa investigativa, onde o ‘dever de casa’ é tentar solucionar o crime.
Foto: Cedida/José Aldenir
BG – É verdade que o cadáver começa a ser analisado, antes mesmo de chegar ao necrotério?
Sim. Antes de tudo é bom esclarecer que todo cadáver que chega ao ITEP é decorrente de morte violenta (agente externo, não biológico). Todo crime deixa vestígio que retrata uma ou mais condutas marcadas no ambiente. E é justamente nesse cenário, impregnado de alterações físicas correlacionadas com a dinâmica do delito, onde peritos do ITEP se debruçam para extrair as primeiras evidências científicas. E numa cena de crime, o cadáver é considerado um importante vestígio.
BG – Que tipo de evidência seria essa?
Vai de uma pegada ou impressão digital a uma mancha de sangue. Tudo é analisado para estabelecer a materialização do crime, como ele se deu e quem o praticou. De acordo com a projeção de uma mancha de sangue, por exemplo, é possível saber o posicionamento dos atores envolvidos, o tipo de instrumento utilizado e traçar, assim, uma possível dinâmica para o crime. É o que chamamos de ‘princípio da correspondência’. O autor de um crime pode ser identificado com a máxima precisão através de uma mancha de sangue deixado na cena do crime, quando, devidamente coletada, e submetida a um exame de DNA. Ou então, através de um exame papiloscópico com as impressões digitais deixadas pelo suspeito na cena do crime.
BG- Existe uma famosa frase do renomado investigador criminal do Corpo Nacional de Polícia da Espanha, Angel Galán, que diz: “Os mortos falam mais que os vivos, ou ao menos não mentem”. O senhor concorda?
Claro, mas não só o corpo exprime isso, óbvio que não verbalizado, como também sua posição, estado abiótico (decomposição), lesões superficiais provocadas e as roupas que ele está vestindo. Tudo isso é levado em conta pelo perito, que para na pele, como costumamos dizer. Já no necrotério, o legista irá observar as lesões internas do cadáver, onde será feito o exame necroscópico e, posteriormente, o laudo que será anexado ao laudo necroscópico do perito criminal. Logicamente, podem ter outros exames que envolve laudo de balística, em armas ou projéteis de armas de fogo; laudo de residuográfico, para saber se suspeito ou vítima realizou disparo; laudo papiloscópico, em vestígios de impressão digital e etc.
BG- E com relação à expressão facial? O cadáver mostra o que sentiu antes de morrer?
É relativo e depende de vários fatores. Não acho que isso deveria ser levado em consideração como sinal científico, apenas aleatório. Já fui a muitas ocorrências de morte violenta, onde o cadáver estava sereno, de boa fechada e sem cara de dor ou pânico. E outra coisa, caso ele tenha sofrido uma lesão neurológica, não haverá caracterização emotiva.
BG- Muita gente acredita que será literalmente devorada por larvas quando morrer. Iremos mesmo virar ‘banquete’ para os vermes ou isso é mito?
Sim e não (risos). Existe, de fato, uma fauna necrófaga, que inclui, além das larvas e outros insetos, alguns roedores e urubus. Porém, não necessariamente o cadáver será consumido exclusivamente por eles, exceto se estiver exposto em local aberto. Acontece que o próprio odor putrefativo, que é intenso e nauseoso, atrai as moscas varejeiras. No corpo, elas depositam seus ovos, que depois viram larvas e passam a se alimentar daquela carne deteriorada durante o ciclo natural da metamorfose. Nesse caso, a decomposição do cadáver é mais acelerada. Em menos de 24 horas, já pode haver a esqueletização de alguns membros, como a face. Ao contrário disso, se o corpo estiver enumado (enterrado), a decomposição ocorrerá devido à ação de bactérias, fungos e outros microrganismos, principalmente oriundos do intestino.
BG- E como os legistas e necrotomistas fazem para minimizar esse odor nas necropsias? 
Mesmo em processo de decomposição, o cadáver é aberto do mesmo jeito, sem nenhuma substância para amenizar o fedor, até porque isso pode alterar os vestígios encontrados no sangue e nos órgãos. Todos usam máscaras apropriadas, roupas e luvas.
BG- O senhor já chegou a nausear?
Cada pessoa tem seu traço de personalidade. Eu, particularmente, nunca passei mal, tão menos tive pesadelos com isso. Meu foco é muito profissional. Sei que estou em local onde ocorreu uma morte violenta, tem um cadáver na minha frente e eu preciso extrair todas as informações inerentes à perícia criminal. Acho até que isso faz com que muitos adquiram, inconscientemente, uma proteção.
BG- Após a necrópsia, o que acontece?
O corpo já irá ficar acondicionado na câmara fria, em temperatura de aproximadamente 2°C. Existe um prazo legal de 10 dias para liberação do cadáver.
BG- E se esse prazo decorrer?
Lamentavelmente, ainda há parentes que abandonam o cadáver, mas o ITEP não é funerária. Após o prazo, se não aparecer ninguém da família para pedir a liberação, inicia-se o processo de inumação de cadáver não identificado. Mas, antes do enterro, são feitas fotografias, coleta das impressões digitais e materiais para futuro exame de DNA, caso seja necessário.
BG- Na estatística do ITEP, quem predomina nas mortes violentas?
A maioria que chega ao necrotério é do sexo masculino. São jovens entre 15 e 24 anos, de cor negra ou parda, oriundos de regiões periféricas. O instrumento causador em grande parte das ocorrências de morte violenta é a arma de fogo, seguido por acidentes de tráfego, principalmente envolvendo motocicletas. As mulheres continuam em números menores. Normalmente são vítimas de feminicídio ou suicídio, como também por estar acompanhada de um parceiro alvo de um atentado violento.
BG- Já aconteceu de algum parente ou familiar morrer, após o reconhecimento do cadáver?
Nos meus 15 anos de serviço no ITEP essa fatalidade nunca aconteceu. Também nunca soube de qualquer outro tipo de óbito dentro da instituição.
BG – Ainda nas estatísticas, existe algum dia mais propenso para incidência de mortes? Rezam as lendas que sábado é sinistro nos necrotérios.
Domingo é o dia da morte (risos). É quando o número de ocorrências tende a subir no ITEP, já que é o dia da folga no trabalho, na maior parte da população. Mas não seria uma causa efeito, apenas uma maior propensão, devido ao aumento de atividade nos bares. Um levantamento feito no ITEP, por exemplo, mostra que as mortes ocorridas por acidentes de carro, ocorrem mais entre à noite de domingo e madrugada da segunda-feira.
BG- Há muitos anos, surgiram relatos dando conta de servidores fazendo sexo com cadáveres. É fato ou lenda urbana?
Eu ouvi falar nisso, mas nada foi comprovado.
BG- Com três legistas e cinco necrotomistas por plantão, o ITEP estaria preparado para suportar uma demanda proveniente de tragédia coletiva?
Sim. Exemplo disso foi o massacre ocorrido em janeiro de 2017, na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, onde foram mortos 27 detentos. Em um caso desses, o ITEP tem como expandir o efetivo, através da disponibilização de diárias operacionais. Nossa estrutura é boa e o corpo profissional muito competente.
BG- Por falar em estrutura, o ITEP adquiriu nova câmara fria, inaugurou seu próprio laboratório para exames de DNA e segue apostando na tecnologia…
A modernização é constante, tanto que o ITEP incorporou ao necrotério o Flat-Scan. Trata-se de um equipamento de ponta, de quase R$ 1 milhão, que permite escanear o cadáver, através de Raio-X de alto desempenho, subsidiando os laudos periciais. O legista observa nas imagens a localização precisa de um projétil que será retirado na incisão. Além disso, a própria estrutura física do prédio foi reformada. Não existem mais animais domésticos no pátio, tão menos cadáveres expostos, como nos anos anteriores. Hoje, posso afirma que o necrotério se assemelha a um centro cirúrgico, com normas e padrões estabelecidos.
BG- Em 2018, mais de 21 mil pessoas prestaram provas do concurso público do ITEP. Das 165 vagas oferecidas, 35 eram destinadas ao cargo de agente de necropsia. A demanda de candidatos surpreende?
Pelo quantitativo geral, sim. No caso da procura pelo cargo de agente de necropsia, digo que é uma profissão forte, impactante. Mas não se difere tanto de outras, como técnico de enfermagem ou médico. Hoje, considero o necrotério do ITEP um centro cirúrgico, com ressalva para a questão científico-criminal. Antigamente se criavam estórias mirabolantes, verdadeiras lendas macabras. Hoje, temos várias mulheres necrotomistas em nosso quadro. Gente com formação em odontologia, engenharia, Direito, entre outras. Todos trabalham com equipamentos de proteção individual (EPI). Mas, é preciso passar por treinamento, ter vocação e, claro, um pouco de ‘estômago’ no início. Durante o curso de formação, no necrotério, foram poucas desistências. A maioria daqueles que saíram foi devido à aprovação em outros concursos públicos. A estatística de abandono foi ínfima.
BG- Mesmo assim, o profissional presenciando imagens nada agradáveis todo dia…
O contato gradativo com a morte abala, realmente (pausa). Mas temos objetivo de trabalhar com a saúde mental dos servidores do ITEP. No próximo ano, iremos desenvolver terapias de grupo. Talvez, policiais militares e civis, além dos bombeiros, estejam mais expostos a um abalo psicológico. Na verdade, a Segurança Pública é uma atividade muito exigente nesse ponto de vista e os profissionais que trabalham na área precisam ter uma política de saúde mental bem orientada para tais peculiaridades. Ademais, fora da área de Segurança Pública, médicos e enfermeiros que atuam nos serviços de saúde também sofrem bastante ao se depararem com vítimas agonizando.
BG- No ponto de vista espiritual ou religioso, é verdade que o legista ou necrotomista estariam propensos a se tornar ateus, após tanta exposição de cadáveres que foram vítimas, inclusive crianças?
Religião vai da convicção de cada um. Pode ser que existam ateus, espíritas, evangélicos no quadro do necrotério.  Na condição de católico, embora não praticante, acredito que Deus não vai ficar regulando quem é bom ou ruim. Ele é uma força que nos permite superar medos, perdas e traumas, ou seja, enfrentar os obstáculos que a vida faz surgir. As coisas simplesmente ocorrem, muitas vezes por livre arbítrio. Não acho que Deus é um ser julgador, tanto que na Bíblia há escrito que para ele todos são iguais. Portanto, a energia divina equilibra o universo. *Blog do BG

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