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quinta-feira, 26 de março de 2015

Crime e castigo: os detalhes do cárcere privado que chocou Natal

Operação que mobilizou aparato técnico e humano de 100 pessoas, ao longo de 41 horas, é considerada a mais complexa do Estado até hoje,


Por Dinarte Assunção


Cárcere privado de 41 horas é considerada a mais complexa operação policial do Estado (Foto: Alberto Leandro)
Cárcere privado de 41 horas é considerada a mais complexa operação policial do Estado (Foto: Alberto Leandro)

Quando o agente penitenciário aposentado Francisco José de Assis Guimarães, 52, cruzou a entrada do condomínio Serra do Cabugi I, em Capim Macio, já tinha planejado todo o crime que estarreceu Natal por 41 horas, período no qual Guimarães manteve refém seu enteado, mobilizando um aparato policial, médico e militar de 100 pessoas, na intervenção que é considerada pelos líderes da bem sucedida empreitada na mais complicada operação policial de que se tem notícia do Rio Grande do Norte.
Fuzileiro naval, Guimarães tinha conhecimento de todos os procedimentos que seriam adotados na tentativa de abortar o cárcere privado. Ele escolheu o condomínio onde morava sua cônjuge pelas dificuldades de acesso e engenharia e arquitetura do local. Nos primeiros contatos com os negociadores, deixou claro seu conhecimento a respeito do assunto.
- Ele dizia: aqui só tem uma saída e é um lugar gradeado. Quero saber como vocês vão fazer para me tirar daqui. – Relembrou ao portalnoar.com o major Rodrigues Barreto.
Instalado no apartamento, o agente penitenciário disparou seis vezes contra a noite. Reuniu consigo todas as informações que tinha sobre as táticas policiais. E não eram poucas porque ele mesmo tinha feito um curso sobre o assunto e estava se preparando para embarcar em um jogo de retórica com o negociador do caso.
O negociador
A perícia de Guimarães foi, de longe, o maior obstáculo a ser superado. Havia quatro alternativas para o caso: tiro de execução; invasão do apartamento; utilização de artefato semi-letal (uma bomba de gás lacrimogênio, por exemplo) e a negociação. Com Guimarães ciente de todas as opções, restou à equipe que se instalou no condomínio Serra do Cabugi explorar à exaustão a medida mais viável no transcorrer do cárcere: a negociação.
O major Florêncio Júnior é um homem de compleição firme. Tem os ombros largos e o rosto bem marcado com a ossatura da mandíbula riscada de uma orelha à outra. Tem a fala mansa, mas decidida. Transmite segurança nas poucas palavras que ousa pronunciar. Parece medir cada uma delas antes de se manifestar, como se analisasse os riscos de dizer algo inapropriado quase ao mesmo tempo em que fala.
Nas 41 horas de cárcere, Guimarães se recusou a falar com familiares, amigos ou qualquer outro negociador. Havia-se estabelecido um elo entre ele e Florêncio. A cada tentativa de persuasão emitida de qualquer outro ator desse enredo que não fosse o major, o agente penitenciário ameaçava matar o enteado e, então, se matar. Diante do quadro, na paciência de Florêncio foi fiada a negociação exitosa.
- Em momento algum eu podia pensar que algo poderia dar errado. O elementar na negociação é falar com verdade. Isso foi o que permitiu que tudo desse certo. – Resumiu Florêncio ao portalnoar.com. Os detalhes das conversas travadas com Guimarães são um segredo estratégico que ele não ousa revelar.
Aparato


Os majores Florêncio, Rodrigues e Trigueiro (da esq. para direita) explicam o caso.
Os majores Florêncio, Rodrigues e Trigueiro (da esq. para direita) explicam o caso.

O Centro Integrado de Operações em Segurança Pública registrou uma ocorrência de rotina a uma da madrugada da sexta-feira (13) no condomínio Serra do Cabugi. Enviado à região, o oficial da área foi o primeiro a tentar dissuadir Guimarães a abortar o plano que se desenrolava no apartamento 206. Diante da negativa, o policial avaliou que seria preciso a intervenção do Bope.  Isolou a área e pediu reforço.
Pouco depois da duas horas, a tranquilidade da Rua Professora Dirce Coutinho foi quebrada com a chegada de viaturas especiais do Batalhão de Operações Especiais. Com o desenrolar da trama, ambulâncias e viaturas se agregaram à composição. Quem acordou para a rotina daquela sexta-feira 13 foi tomado de surpresa com forte esquema de segurança.
A parafernália exata do Bope é um mistério que permanecerá com quem participou da operação. O major Rodrigo Trigueiro, comandante do Bope, relacionou, no entanto, que o aparato à disposição estava intrinsecamente ligado às quatro opções táticas consideradas no esquema. Havia, portanto, artefatos semiletais para serem usados a qualquer hora e atiradores de elite posicionados para a execução de Guimarães.
Uma das questões que afligiu repórteres e transeuntes que se espalharam no perímetro da operação era por que a polícia não colocava um fim ao martírio com um tiro de misericórdia em Guimarães. Oportunidade não faltou.
- Lembro que à certa altura, recebi de um dos atiradores o aviso de que o alvo estava pronto. Só precisava de uma autorização – lembrou o major Rodrigues.
No momento em que a decisão poderia ter sido pela execução, Guimarães estava exposto na janela, com o peito nu, sem arma alguma na mão. Era quase um pedido para que fosse assassinado. Mas a literatura policial tem ensinado outro caminho.
- Naquele momento, ele não estava armado, o garoto não estava em risco. Não tínhamos dúvidas de que ele queria ser executado. Ele queria a morte porque não tinha coragem de se suicidar, mas nossas ações se baseiam em ética, moral e jurídico. E esses três elementos não se encontravam naquela hora. Decidimos seguir com a negociação – explicou o major.
Pesou na decisão o perfil de Guimarães. Sendo conhecido e sem elementos conclusivos para sua execução, além da negociação em andamento estar sendo considerada exitosa, ele foi mantido vivo. Como no enredo de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski, onde o personagem central, Rodion Românovitch, tem a pena abreviada, Guimarães foi poupado. Também como na trama russa, na de Natal deverá haver castigo.
Exigências
Para a polícia, a motivação do crime foi passional. E isso se traduziu na mais veemente das exigências feitas por Guimarães. A troca que ele tentou fazer a quase todo momento era o enteado pela irmã ou a mãe do garoto. Com ambas ele vinha tendo desentendimentos. A primeira, inclusive, chegou a registrar ocorrência contra o agente penitenciário aposentado.
Todas as decisões sobre o que Guimarães pedia eram tomadas em conjunto pela equipe do gabinete de crise montado no condomínio Serra do Cabugi. A princípio básico ao atender uma exigência era considerar se o que estava em questão era ou não negociável. A permuta de reféns, por exemplo, era impensável.
Por outro lado, dava para ceder em alguns pontos. De pronto, Guimarães avisou que se a energia e água fossem cortadas, o desfecho seria trágico para o garoto mantido refém. Foi assim que ele se manteve informado o tempo todo sobre tudo que se desenrolava na imprensa a respeito do caso.
Os negociadores também cederam a pedidos de comida, que era sempre submetida primeiro ao garoto, com um lembrete de Guimarães: se o enteado passasse mal ou adormecesse, levando-o a crer que a comida estava envenenada, a morte selaria o destino dos confinados no apartamento 206.
- Por isso que era importante manter o diálogo com a verdade – registrou o negociador major Florêncio.
Até detalhes minuciosos eram contados ao agente penitenciário. A evacuação do condomínio foi um deles. A cada movimento da polícia, Guimarães era informado da rota que seria feita e que não eventual barulho não seria tentativa de invadir o apartamento.
- Desde o início ele colocou um sofá, uma mesa de seis lugares contra a porta, mais algumas panelas. E tinha avisado que se houvesse qualquer barulho, se uma panela daquelas caísse, ele matava o garoto e se matava.
Castigo
Até o momento, os três agentes da PM que concederam entrevista ao portalnoar.com consideram que o Guimarães deverá ser enquadrado por cárcere privado, previsto no artigo 148 do Código Penal, para o qual a pena é reclusão de dois a cinco anos.
Caberá à delegada Alzira Veiga, titular da 10ª DP, onde o caso corre decidir pelo indiciamento. Em contato com a reportagem ela confirmou apenas que a agenda das oitivas está sendo montada para ouvir as testemunhas do caso, incluindo aí o enteado mantido refém.
Francisco José de Assis Guimarães tentou se matar no desfecho do caso, no fim da tarde de sábado (17), quando as negociações produziram efeito e ele liberou o garoto. Ele cortou os pulsos e deu um tiro no próprio queixo. Socorrido, ele está internado na UTI do Hospital Clóvis Sarinho.
Atualizado em 16 de março às 14:09

Álbum de fotos

(Foto: Divulgação/Sesed)

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