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sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Bilhões da Lei Rouanet: o mundo artístico brasileiro é outro Centrão


Quando eu era editor-executivo da revista Veja, lá se vai um quarto de século, jornalistas que estavam sob o meu guarda-chuva apuraram desvios de dinheiro captado via Lei Rouanet — ou seja, por meio de renúncia fiscal do governo — para produzir filmes e outros projetos culturais.

Eles descobriram superfaturamentos nos orçamentos de produção, esquemas de toma lá dá cá, financiamento de projetos toscos, risíveis, falta de controle sobre as prestações de contas e casos de enriquecimento ilícito.

Um dos escândalos revelados por nós foi o de uma atriz e cineasta que comprou um apartamento com o dinheiro que deveria ter sido usado para fazer um longa-metragem. Viramos carrascos, claro.

 Lembrei-me dessa passagem da minha vida profissional ao ler a reportagem do meu colega de site Paulo Cappelli. Ele teve acesso ao total que o governo Lula, em um ano de governo, liberou para ser captado por intermédio da Lei Rouanet. Foram espantosos (arredondando para baixo) R$ 16 bilhões, recorde histórico, bufunfa maior do que a liberada durante os 4 anos de governo Bolsonaro. Para se ter ideia, representa 10% do orçamento federal para a Educação.

O primeiro estrago causado pela Lei Rouanet foi a seu próprio idealizador. Sérgio Paulo Rouanet era um dos grandes e poucos intelectuais brasileiros dignos desse nome. Rivalizava com luminares franceses e a sua obra abrange, com elegância e profundidade, da filosofia à psicanálise. Os Dez Amigos de Freud, de sua autoria, sobre os escritores preferidos do pai da psicanálise, é uma preciosidade.

O nome de Rouanet, contudo, entrou para a história da infâmia por causa da lei que ele idealizou quando era secretário de Cultura do governo Fernando Collor de Mello. Não em virtude da lei, propriamente, bem-intencionada no sentido de fomentar a cultura e as artes, mas por causa da esculhambação que fizeram com ela, desde o início, neste país reconhecido mundialmente pela honestidade e pela decência.

Experimento ímpetos primitivos ao ouvir alguém dizer que os recursos captados via Lei Rouanet não são dinheiro público. É dinheiro público na carótida. O Fisco abre mão de parte dos impostos devidos por cidadãos ou empresas, dentro de limites fixados pela lei, e essa soma, na forma de patrocínio, vai para o produtor cultural tocar o seu projeto previamente aprovado pelo Ministério da Cultura. O produtor tem o prazo de 24 meses para captar, junto a eventuais patrocinadores, o dinheiro da renúncia fiscal que lhe foi reservado.

Esses 16 bilhões de reais, portanto, são o montante que o governo Lula poderá deixar de arrecadar até 2025, se todos os projetos aprovados encontrarem patrocínio no prazo estipulado. Afora a boiada que ainda passará até o final do mandato do petista.

Parte dos recursos captados pela Lei Rouanet é para financiar museus e outras instituições de notório interesse público, mas o grosso mesmo paga peças teatrais, filmes, shows e exposições. Um dos problemas evidentes é que muitas dessas produções são de gente famosa que não precisaria de patrocínio com dinheiro de renúncia fiscal. Há um casamento sólido nesse aspecto.

O casamento: promover artistas consagrados é um ótimo negócio também para as grandes empresas, porque o marketing tem alcance infinitamente maior do que o de ter uma plaquinha em um museu ou estar na faixa de agradecimento do espetáculo inovador de boi-bumbá em Catolé do Rocha. Temos aí uma distorção do espírito da Lei Rouanet, que era o de conservar patrimônio cultural tangível, estimular artistas promissores e levar a cultura aos quatro cantos do país. Na realidade, ocorre o financiamento público do marketing de corporações gigantes que se vendem como mecenas privados.

Volte-se aos R$ 16 bilhões. Seja quais forem as suas destinações, justas ou injustas, malandras ou honestas, é uma exorbitância para qualquer governo, em especial um governo que precisa gastar menos o dinheiro que não tem. Para mim, soa como confissão essa história de que o cascalho bilionário é para compensar a penúria durante o governo Bolsonaro, a “demanda reprimida”, como disse a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Confissão de que a bufunfa desproporcional é retribuição ao mundo artístico e cultural pelo apoio eleitoral na eleição presidencial. O mundo artístico e cultural brasileiro é outro Centrão.

Por Metrópoles

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