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segunda-feira, 4 de maio de 2015

Rotina do medo: Conselheiros tutelares sofrem com ameaças


Ameaças, espancamentos, assassinatos. As pessoas escolhidas pela comunidade para proteger as crianças vivem uma rotina de terror.

O Conselheiro tutelar é um guardião dos direitos da infância e adolescência. Tem o dever de aconselhar os pais, ouvir reclamações, apurar denúncias de abuso e maus tratos, e avisar a justiça caso uma criança esteja em perigo.

O problema é que há reações violentas contra esse trabalho tão importante. Uma chacina no interior de Pernambuco, no começo de fevereiro, expôs o risco a que estão submetidos conselheiros de todo o Brasil.

Em uma cidadezinha do interior, a emboscada fatal. “A gente procurou o chão, porque o chão sumiu”, diz a conselheira tutelar Maria Isabel.

Três dos cinco integrantes de um conselho tutelar assassinados de uma só vez. Podia ter sido eu”, diz Maria Isabel.

Na periferia da metrópole, a ameaça. “Batiam no vidro do carro e apontavam para o menino falando que ele ia morrer”, afirma o conselheiro tutelar Abel Gramacho.

O espancamento: “Foram tapas, pontapés. Tem até uma marca aqui ainda”, afirma o conselheiro tutelar Lourisvaldo Rocha.

Não o importa o tamanho da cidade, nem a região do país. Ser conselheiro tutelar virou atividade de risco. O Conselho Tutelar foi criado junto com o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. É composto por cinco moradores eleitos pela comunidade onde vivem, para que a própria sociedade cuide de suas crianças. No dia 4 de outubro, todos os municípios vão eleger novos conselheiros ao mesmo tempo, na primeira votação unificada do Brasil.

O mandato passa de três anos, como é hoje, para quatro anos. Os conselheiros são remunerados. As prefeituras têm autonomia para fixar o salário deles, a maioria paga salário mínimo de R$ 788 por mês. As cidades maiores pagam mais. Em Brasília, por exemplo, o salário de conselheiro é de R$ 4.684.

“Conselheiro, para mim, é anjo sem asa. É aquele que guia. É aquele que mostra um caminho”, diz conselheira tutelar Carla Patrícia.

Mas famílias que expõem crianças a algum risco nem sempre aceitam a intervenção de conselheiros que, muitas vezes, moram no mesmo bairro.

Mulher: A partir do momento que vocês "entrou" na minha vida, vocês "acabou" com a minha vida. Acabou!
Conselheira tutelar: Nosso intuito é tentar melhorar.
Mulher: Não. Não! Vocês não ajudaram. Vocês só ajudaram a atrapalhar.

“Hoje nós somos os bichos-papões das crianças. Porque a pessoa não diz à criança que o conselho está para lhe defender. Ela diz: ‘o conselho vai lhe punir, o conselho vai te prender’. E não é isso”, afirma conselheiro tutelar Anderson Amaro,

As polícias estaduais têm de dar segurança aos conselhos. E a lei diz que as prefeituras e, no caso de Brasília, o governo do Distrito Federal, têm de dar estrutura para que eles funcionem. O que nem sempre acontece. “A realidade é uma só: é descaso, é falta de prédio, é falta de transporte, é falta de material de trabalho, às vezes o básico”, afirma a conselheira titular Ildene Cardoso Rodrigues.

Em Tufilândia, no noroeste do Maranhão, o Conselho Tutelar funciona em uma sala acanhada.

Fantástico: O que vocês têm à disposição de vocês é esta sala apenas?
Nicilene Nogueira, conselheira tutelar: Sempre foi esta sala. Não é de agora não.

Não há privacidade para ouvir vítimas de abuso. Nem carro para fazer visitas. Nem orçamento o conselho tem, embora a lei mande destinar 2% do Fundo de Participação dos Municípios.

“Também não vamos botar a culpa só na administração que está hoje, porque todas as administrações que passaram por aqui é sempre a mesma coisa”, afirma o conselheiro Expedito Teixeira.

E o pior: a última eleição foi em 2003. Os conselheiros são reconduzidos pela prefeitura sem votação.

Nicilene Nogueira: Estamos já com 11 anos.
Fantástico: Mas por que nunca teve eleição?
Nicilene Nogueira: Porque os gestores nunca fizeram.
Fantástico: A prefeitura nunca providenciou?
Nicilene Nogueira: Não, nunca providenciou.

Tudo ilegal. Fantástico foi saber do prefeito o porquê disso. Mas ele não veio hoje.
É o chefe de gabinete quem se explica.

Fantástico: Por que até agora não foi feita uma nova eleição e permanecem os mesmos conselheiros desde 2003?
Edmilson Lopes: Sim. Observa só: essa gestão, ela responde a partir de 2013, 1º de janeiro de 2013.

Será que os políticos e prefeitos entendem a importância do conselho?

Edmilson Lopes: O Conselho Tutelar é de responsabilidade não da classe política, mas da sociedade civil organizada.
Fantástico: Mas a lei diz que a prefeitura tem de dar as condições para que o conselho possa funcionar plenamente.
Edmilson Lopes: Isso, a lei diz que a prefeitura tem que dar as condições, a lei diz que o município tem de funcionar na sua plenitude. Esse é o gabinete do prefeito. Você pode dar uma olhada nas condições e que é um pouquinho diferente da maioria das cidades onde você passou e fez outras matérias.     
Fantástico: O senhor acha que o município não tem condições de dar ao conselho um funcionamento melhor do que ele tem hoje?
Edmilson Lopes: Nas atuais circunstâncias, não.

Essa precariedade se reproduz até mesmo na capital do país. Em 2013, o Fantástico mostrou o Conselho Tutelar de Samambaia, no Distrito Federal, cheio de goteiras. Mais de 100 processos destruídos pela água da chuva.

Chover, não chove mais. O telhado foi consertado logo depois da reportagem. Mas isso não significa que os problemas não se acumulem, especialmente no que diz respeito à segurança, ainda que a 100 metros do local exista uma delegacia de polícia.

“Tem uma delegacia aqui na frente, mas isso não intimidou os agressores. Aqui nesse local que a gente está, teve nove tiros aqui entre um assaltante e um policial”, afirma o conselheiro tutelar Ilton Teixeira.

Fora a surra que um conselheiro levou na sala dele, dentro do conselho. “Apanhou de pau aqui, teve sangue, o conselheiro tutelar registrou ocorrência policial”, conta Ilton Teixeira.

E o risco não se restringe aos horários de trabalho. “Nós somos integrantes dessa comunidade, nós somos dessa comunidade. Então a gente, às vezes, se sente. Você vai na padaria com seu filho e você se sente ameaçado”, diz Ilton Teixeira.

Em outra cidade do Distrito Federal, um conselheiro não sabe mais o que fazer.

Fantástico: Quantas vezes você já foi ameaçado?
Conselheiro tutelar: Fui ameaçado três vezes.
Fantástico: E agredido fisicamente, quantas?
Conselheiro tutelar: E agredido fisicamente duas vezes.

A primeira vez, foi perto da casa dele. “Murros, socos. Teve um momento em que eu caí, e nesse momento eu fiquei com mais medo porque eu pensei que eles iriam pular na minha cabeça”, afirma o conselheiro tutelar.

Na segunda vez, ele estava dentro de um ônibus. “Só que dessa vez eu apanhei muito, fui jogado de dentro do ônibus para fora, sangrei, meu nariz chegou a quase quebrar. Eu, nesse momento, realmente pensei: ‘acho que agora eu vou morrer’”, conta o conselheiro tutelar.

Voltou ao trabalho depois de ficar afastado por dois meses para se recuperar. Mas o medo nunca mais o abandonou. “Porque aí a gente cai na real de que é muito fácil você matar um conselheiro”, conta.

Foi o que aconteceu com Lindenberg Vasconcelos, Carmen Lúcia da Silva e Daniel Farias. Eles foram emboscados em uma estrada rural de Poção, no agreste de Pernambuco.

Os três conselheiros, uma menina de 3 anos, órfã de mãe, e a avó materna dela estavam no carro. Só a criança sobreviveu. A cidadezinha de 12 mil habitantes entrou em choque. “Ainda hoje eu não estou acreditando no que eu vi não”, diz o agricultor Luciano dos Santos Silva.

“Foi um sentimento para todo mundo. Porque Poção aqui nunca existiu dessas barbaridades, gente. De jeito nenhum”, afirma o agricultor Manuel José da Silva.

A polícia de Pernambuco prendeu seis envolvidos na chacina, inclusive a mandante: Bernadete de Lourdes Rocha, avó paterna da criança. Ela disputava a guarda da neta com a avó materna assassinada. Só um dos acusados está foragido: Welliton Silvestre que seria um dos pistoleiros.

Na varanda do Conselho Tutelar de Poção, um pano preto. Três novos conselheiros já assumiram.

Fantástico: Está como medo?
Elizer Bezerra: Com medo, mas estou aqui procurando fazer o que é melhor para a nossa sociedade.

Colegas das cidades vizinhas foram até lá fazer uma corrente de oração. “E nós queremos louvar por todo o trabalho que os nossos irmãos desempenharam nessa passagem deles aqui na Terra. E dizermos nós, que ficamos, que nós estamos na luta”.

Todos têm alguma história de ameaça para contar. “Algumas pessoas botando a gente para descer apontando arma para gente”, diz o conselheiro tutelar Rodrigo Angelo.

“Chegaram até a chutar a porta para tentar entrar e pegar a gente”, conta o conselheiro tutelar Claudivan Macena.

Não foi fácil preencher as vagas do conselho de Poção. Da imensa lista de suplentes, só Elizer, Donizete e Isabel toparam. Mesmo assim com restrições. “Se eu tiver que entrar no carro do conselho, eu renuncio. Eu renuncio. Não é que vai acontecer a mesma coisa. Mas psicologicamente eu não tenho condições de entrar e me sentar no mesmo lugar onde eu sei que os meus colegas foram assassinados”, afirma Isabel. 

Isabel conviveu muito com os colegas assassinados, algumas vezes, cobrindo as férias deles.
“A gente sempre brincava para disfarçar o nervosismo. Só um que não era muito nervoso, que amava demais e não temia, era Lindenberg”, diz Isabel

Um homem de bem com a vida. Inteiramente dedicado às crianças da cidade. “Era o primeiro a chegar no Conselho Tutelar, era o último a sair”, conta Luís de França, pai de Lindenberg.   

Lindenberg deixou mulher, dois filhos, e um pai inconformado. “Me orgulho do seu legado, da sua dedicação, da sua defesa aos mais humildes e aos mais necessitados. É o que eu posso dizer para o meu filho”, afirma Luís de França.

Daniel não tinha filhos. Carmen Lúcia deixou uma adolescente de 14 anos. “Eu só queria Justiça. Eu queria que eles pagassem pelo que eles fizeram”, diz a jovem.

Apesar do medo, os novos conselheiros de Poção já estão em campo. “Se a gente não assumisse, o conselho poderia fechar. E não é justo, pelo trabalho que os outros desenvolviam e que eles morreram trabalhando, a gente se acovardar, por medo”, destaca Isabel.

Há muito a fazer, em uma cidade tão pobre, com famílias enfrentando a escassez e a desesperança e encontrando nos conselheiros tutelares o único amparo possível.

“A gente não vai deixar o medo ser maior do que os sonhos e os ideais. Medo nós temos, mas nós temos de ir à luta”, afirma Isabel.

G1- Fantástico

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